do tratado da reforma da inteligência
"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Não há uma alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
... muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. ...
Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia.
O alferes aliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Os fatos explicarão melhor os sentimentos, os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça enamorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando.
Mas o certo é que fiquei só,... Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exerior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.
Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, tic-tac, feriam-se a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga.
Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...
De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão e linhas, a mesma decomposição de contornos...
Lembrou-me vestir a farda de alferes... e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e ... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono.
Analisando o conto, o professor Marcos Bondam entende que O Espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública, a alma humana é dúbia, ou seja, os tipos sociais (marido, comerciante, político, etc.) teriam um comportamento previsível, o que não ocorre individualmente com as pessoas. ... O desejo individual se esconde quando as personagens se limitam a desempenhar seus comportamentos sociais. A alma exterior, que olha de fora para dentro, segundo Machado de Assis, é uma casca ou couraça que as pessoas criam para sobreviver na luta social. Mas algumas se prendem a elas tão radicalmente que eliminam sua alma interior, seu verdadeiro EU, deparando-se com um nada, um vazio completo. O homem é um ator social.
Pura poesia!
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
mato com delicadeza. faço chorar delicadamente
e me deleito. inventei o carinho dos pés; minha alma
áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre
um corpo de adúltera.
na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com
todas delicado e atento.
se me entediam, abandono-as delicadamente,
despreendendo-me delas com uma doçura de água.
se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
desprende esse fluido que as envolve de maneira
irremissível
sou um meigo energúmeno. até hoje só bati numa
mulher
mas com singular delicadeza. não sou bom
nem mau: sou delicado. preciso ser delicado
porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
como um lobo.
Encontrei nesse poema uma verdade singular, traduzida por Affonso com maestria: porque somos ferozes precisamos ser delicados. E que sejamos, então, delicados. Se necessário for, cruelmente delicados.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
sábado, 23 de outubro de 2010
e seus pesadelos atrasados
vários retratos nunca tirados
de dentro de meu quarto
e a chuva esquecida de outonos
que brota da boca
e sopra palavras
versos afora
nos olhos, a cor repete gestos obscenos
vigiando as manhãs mal dormidas
as horas jamais antecipadas
não escritas nos papéis
onde constara meu nome
onde não corria qualquer pedaço de rio
e a água estagnada
cheirava a morte
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Aí vai mais um poema do novo livro, Córrego de amarras:
olhos
dois lagos que piscam
concisão do azul indeciso
violinos silvestres
saturados de substância
empalidecem lilazes
lívidos lírios
cair-se de amor de suma altura
e aprender a nascer velho a cada dia
a tecer invenção
a calar iniquidades
na insanidade que é ter
garça distraída
além do limite do isento
livre como ser ninguém
caminho por escrito
nessa caligrafia coreografada
em casa larga
boca-traço sem nome
o prumo do riso
de um dizer sempre oblíquo
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
sábado, 11 de setembro de 2010
despedidas [jaime]
Agora vocês me encontrarão em dois blogs, um destinado ao que designei prosa ligeira, que se chama tênues considerações e outro, destinado a poesia e a de um tudo sobre poesia, que se designará o arco da lira
domingo, 15 de agosto de 2010
Um tantinho de Vínicius de Moraes
Pátria Minha
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, porque e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Por que te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo o adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala esrangeira com lareira
E sem pé-direito
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova
[Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me Surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve !
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo !
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes
Pátria minha ... a minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento a fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama ...
Vínicius de Moraes".
sexta-feira, 16 de julho de 2010
um tantinho de Murilo Mendes
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Poema do dia 10 de maio de 2010
dentro do meu coração
cabe mesmo um deus bem grandão
bem cheio da imprecisão
de quem tudo sabe
mas nada diz
pralém da ponta do seu nariz
domingo, 25 de abril de 2010
Ser – um tantinho de Carlos Drummond de Andrade
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
Seu ombro nenhum.
Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito
não me percebeste,
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.
terça-feira, 30 de março de 2010
domingo, 21 de março de 2010
pequenas considerações sobre uma carta de Vitor Hugo
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quarta-feira, 17 de março de 2010
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
amigos de viagem
domingo, 31 de janeiro de 2010
pp&m
http://www.youtube.com/watch?v=_UKvpONl3No
http://www.youtube.com/watch?v=Wik2uc69WbU
http://www.youtube.com/watch?v=0OCnHNk2Hac
http://www.youtube.com/watch?v=3t4g_1VoGw4
http://www.youtube.com/watch?v=1oU7M4OeSRM
http://www.youtube.com/watch?v=U2HSfKjOKYI
http://www.youtube.com/watch?v=HPbB5n-OW8Q
http://www.youtube.com/watch?v=GCPAhR09wCA
http://www.youtube.com/watch?v=Fa3h3pnhg8s
http://www.youtube.com/watch?v=qUnvjYH9wK4
http://www.youtube.com/watch?v=Fto9ji994JY
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Tornar à origem
domingo, 24 de janeiro de 2010
sábado, 23 de janeiro de 2010
terminado em 22/01/2010
só
ao findar do dia
torno à minha casa
mas que retorno pode haver
se o que torna não é o mesmo que parte
se aquilo que fica
e te acolhe no fim da trilha
já não é senão o duplo do que deixaste
domingo, 17 de janeiro de 2010
sábado, 16 de janeiro de 2010
o repente extemporâneo de uma verdade
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
domingo, 3 de janeiro de 2010
Um tantinho de Ernesto Sábato (de O escritor e seus Fantasmas)
Um tantinho de Clarice Lispector (de Perto do Coração Selvagem)
Margarida a Violeta conhecia
uma era cega, uma bem louca vivia
a cega sabia o que a doida dizia
e terminou vendo o que ninguém mais via ...