do tratado da reforma da inteligência

"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Não sou muito dada a gostar de prosa, mas andei lendo alguns contos de Machado de Assis (1839-1908), um dos maiores nomes do Realismo brasileiro e, por ter juntado o estilo impecável e a ironia à crítica mordaz e o humor, vale mencionar um deles em especial, O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana, e algumas de suas passagens brilhantes. Nesse conto, o personagem central, chamado Jacobina, revela como reconheceu sua identidade, por volta de 25 anos, quando foi nomeado alferes da guarda nacional e vestiu uma farda. E sentencia:





Não há uma alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.


Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.


Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...


... muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. ...


Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia.


O alferes aliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.


Os fatos explicarão melhor os sentimentos, os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça enamorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando.


Mas o certo é que fiquei só,... Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exerior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.


Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, tic-tac, feriam-se a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga.


Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...


De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão e linhas, a mesma decomposição de contornos...


Lembrou-me vestir a farda de alferes... e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e ... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono.




Analisando o conto, o professor Marcos Bondam entende que O Espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública, a alma humana é dúbia, ou seja, os tipos sociais (marido, comerciante, político, etc.) teriam um comportamento previsível, o que não ocorre individualmente com as pessoas. ... O desejo individual se esconde quando as personagens se limitam a desempenhar seus comportamentos sociais. A alma exterior, que olha de fora para dentro, segundo Machado de Assis, é uma casca ou couraça que as pessoas criam para sobreviver na luta social. Mas algumas se prendem a elas tão radicalmente que eliminam sua alma interior, seu verdadeiro EU, deparando-se com um nada, um vazio completo. O homem é um ator social.


Pura poesia!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

a hora de começar de novo

a última hora
sem música
direta
a mais ardida


a navalha em busca do que se manteve reservado
os limites muito além dos pés no chão


lágrimas


até não poder mais agarrar as páginas líquidas



sexta-feira, 26 de novembro de 2010



Dia desses me deparei na Feira do Livro com uma publicação da L&PM, um livro de crônicas do nosso poeta Affonso Romano de Sant'Anna, Tempo de delicadeza, em que trata, delicadamente, de temas corriqueiros da vida com o olhar único de poeta. Trouxe pra casa e tenho desfrutado com prazer dos textos que ali encontrei. Dentre eles, o que traz o nome do livro e crônica de abertura, Tempo de delicadeza, fala da necessidade de sermos urgentemente delicados, diante da violência, da velocidade, da rudeza que vem tomando conta do nosso cotidiano. O poeta cita, segundo suas próprias palavras, "nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há vinte anos nos deixou, delicadamente", que era um profissional da delicadeza e que, na sua Elegia ao primeiro amigo, disse:



mato com delicadeza. faço chorar delicadamente
e me deleito. inventei o carinho dos pés; minha alma
áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre
um corpo de adúltera.
na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com
todas delicado e atento.
se me entediam, abandono-as delicadamente,
despreendendo-me delas com uma doçura de água.
se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
desprende esse fluido que as envolve de maneira
irremissível
sou um meigo energúmeno. até hoje só bati numa
mulher
mas com singular delicadeza. não sou bom
nem mau: sou delicado. preciso ser delicado
porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
como um lobo.


 
Encontrei nesse poema uma verdade singular, traduzida por Affonso com maestria: porque somos ferozes precisamos ser delicados. E que sejamos, então, delicados. Se necessário for, cruelmente delicados.
 
 
 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010



escada pede um lugar de morar
marcenaria alinhada
madeira aparente
peroba-do-campo e descanso às lembranças



o sobrado tinha



refúgio não garante proteção



sábado, 23 de outubro de 2010

guardo muitas noites
e seus pesadelos atrasados
vários retratos nunca tirados
de dentro de meu quarto
e a chuva esquecida de outonos
que brota da boca
e sopra palavras
versos afora



nos olhos, a cor repete gestos obscenos
vigiando as manhãs mal dormidas
as horas jamais antecipadas
não escritas nos papéis
onde constara meu nome
onde não corria qualquer pedaço de rio
e a água estagnada
cheirava a morte



quinta-feira, 14 de outubro de 2010


beijo onde não queres beijo


a ferida aberta a fórceps


a decência escancarada


tua alma teu trauma


tua entranha


beijo





segunda-feira, 4 de outubro de 2010



Aí vai mais um poema do novo livro, Córrego de amarras:




olhos
dois lagos que piscam
concisão do azul indeciso
violinos silvestres
saturados de substância
empalidecem lilazes




lívidos lírios




cair-se de amor de suma altura
e aprender a nascer velho a cada dia
a tecer invenção
a calar iniquidades
na insanidade que é ter
garça distraída
além do limite do isento
livre como ser ninguém




caminho por escrito
nessa caligrafia coreografada
em casa larga
boca-traço sem nome
o prumo do riso
de um dizer sempre oblíquo

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


De hoje em diante, caminho sozinha. A incompetência das pernas ainda parece maior do que a vontade de prosseguir, sem parceria, nessa empreitada, mas quero muito tentar. Confesso que a contribuição do Jaime fará muita falta, já que ele é quem vinha tocando quase tudo sozinho por aqui. Seguirei no mesmo rumo, entretanto. A cara do blog já mudou, mas só um pouco e, não estranhem se isso se tornar habitual, pois adoro mudanças. Faz parte de minha essência geminiana. Para conhecimento de todos, acabo de lançar meu segundo livro, pela editora Movimento, chamado Córrego de Amarras, lançamento esse que se deu no dia 10 de setembro passado, na livraria Palavraria, noite muito feliz para mim. Então, aí vai postagem com um dos poemas que constam do livro:




na sua voz, o que há de intratável

no gesto do corpo apanhado em ação e imobilizado

o curto fôlego das figuras

as palavras, nunca loucas, estão, no máximo, perversas

e, nas mais suaves, o sobressalto de um suspense



engendro monstros para não subestimar o poder do acaso

dissolvido, não sou recolhido em parte alguma

no ruído de um rasgão

o horror do estrago ainda mais forte do que a angústia da perda

plantado no lugar, sofro feito um pacote num canto esquecido da estação

falo pelo buraco na fechadura da linguagem

colho fungos na raiz do poema sequer dito

e minhas verdades não posso ler em qualquer recanto do corpo adverso

digo meu plural onde me ofereço em carinhos

mesmo quando nada tenho a dizer

ainda assim é a ti que digo nada

e te amo como se deve amar, em desespero, asfixiado de dor

num relâmpago frio

sequer o belo véu do silêncio

pode chorar todas as lágrimas do meu corpo



peço à pele que responda ao meu afeto

como se tivesse dedos na ponta de minhas palavras

cultivo esse roçar na escrita seca e obtusa

totalidade indelicada



o que me sufoca

inquietação que desgasta o ser

e no entanto não mata

porque não se morre de dor



escalpelado, sou poeta apenas quanto ao começo

faço luto à minha própria sinceridade

o corpo arrebenta em dizer quando calo minha voz

e escureço minha própria vista para não ser visto

sábado, 11 de setembro de 2010

despedidas [jaime]

Hoje deixo o blog. Migro para o novo blog. Resolvi após pensar um pouquinho partir novamente fazer um blog em modo solo. Deixo este espaço na certeza de ficar bem representado pela minha amiga Deisi Beier. Poeta das mais interessantes e agora com o seu novo livro Córrego de Amarras. Lançado ontem, dia 10/09/10.
Agora vocês me encontrarão em dois blogs, um destinado ao que designei prosa ligeira, que se chama tênues considerações e outro, destinado a poesia e a de um tudo sobre poesia, que se designará o arco da lira

domingo, 15 de agosto de 2010

Um tantinho de Vínicius de Moraes

Pátria Minha


 

A minha pátria é como se não fosse, é íntima

Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo

É minha pátria. Por isso, no exílio

Assistindo dormir meu filho

Choro de saudades de minha pátria.


 

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:

Não sei. De fato, não sei

Como, porque e quando a minha pátria

Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água

Que elaboram e liquefazem a minha mágoa

Em longas lágrimas amargas


 

Vontade de beijar os olhos de minha pátria

De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos

Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias

De minha pátria, de minha pátria sem sapatos

E sem meias, pátria minha

Tão pobrinha!


 

Por que te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho

Pátria, eu semente que nasci do vento

Eu que não vou e não venho, eu que permaneço

Em contato com a dor do tempo, eu elemento

De ligação entre a ação e o pensamento

Eu fio invisível no espaço de todo o adeus

Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido

De flor; tenho-te como um amor morrido

A quem se jurou; tenho-te como uma fé

Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito

Nesta sala esrangeira com lareira

E sem pé-direito


 

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova

[Inglaterra

Quando tudo passou a ser infinito e nada terra

E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu

Muitos me Surpreenderam parado no campo sem luz

À espera de ver surgir a Cruz do Sul

Que eu sabia, mas amanheceu...


 

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha

Amada, idolatrada, salve, salve !

Que mais doce esperança acorrentada

O não poder dizer-te: aguarda...

Não tardo !


 

Quero rever-te, pátria minha, e para

Rever-te me esqueci de tudo

Fui cego, estropiado, surdo, mudo

Vi minha humilde morte cara a cara

Rasguei poemas, mulheres, horizontes

Fiquei simples, sem fontes


 


 


 

Pátria minha ... a minha pátria não é florão, nem ostenta

Lábaro não; a minha pátria é desolação

De caminhos, a minha pátria é terra sedenta

E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular

Que bebe nuvem, come terra

E urina mar.


 

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem

Uma quentura, um querer bem, um bem

Um libertas quae sera tamen

Que um dia traduzi num exame escrito:

"Liberta que serás também"

E repito!


 

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa

Que brinca em teus cabelos e te alisa

Pátria minha, e perfuma o teu chão...

Que vontade me vem de adormecer-me

Entre teus doces montes, pátria minha

Atento a fome em tuas entranhas

E ao batuque em teu coração.


 

Não te direi o nome, pátria minha

Teu nome é pátria amada, é patriazinha

Não rima com mãe gentil

Vives em mim como uma filha, que és

Uma ilha de ternura: a Ilha

Brasil, talvez.


 


 

Agora chamarei a amiga cotovia

E pedirei que peça ao rouxinol do dia

Que peça ao sabiá

Para levar-te presto este avigrama:

"Pátria minha, saudades de quem te ama ...

Vínicius de Moraes".

sexta-feira, 16 de julho de 2010

um tantinho de Murilo Mendes


A Outra Infância

 
Meninos que daqui não vejo
Dançam e cantam de roda no terreiro ao lado.

 
O menino que também brincou de roda
Seria mesmo eu? Creio que não.
(Viramos crianças
Ao imaginar a criança que não fomos.)
Já era outro menino, já pensava,
Iluminando-me com duas luas
- Uma na cabeça.


domingo, 25 de abril de 2010

Ser – um tantinho de Carlos Drummond de Andrade



 

O filho que não fiz

hoje seria homem.

Ele corre na brisa,

sem carne, sem nome.


 

Às vezes o encontro

num encontro de nuvem.

Apóia em meu ombro

Seu ombro nenhum.


 

Interrogo meu filho,

objeto de ar:

em que gruta ou concha

quedas abstrato?


 

Lá onde eu jazia,

responde-me o hálito

não me percebeste,

contudo chamava-te


 

como ainda te chamo

(além, além do amor)

onde nada, tudo

aspira a criar-se.


 

O filho que não fiz

faz-se por si mesmo.

terça-feira, 30 de março de 2010



do abismo da desordem
como a água que é outra a cada instante
assim trago os sentimentos
tenho somente meia razão
e está tudo tão quieto que
mesmo o morto ao lado quebraria
se o tédio faz parte de uma vida
de sentimentos honestos
os homens de boa-vontade
têm um ar magoado
um silêncio de multidão
e a necessidade de poder contar a sua história
porque estar também é dar
e o corpo guarda a solidão do espírito
no impasse do si mesmo
uma solidão árida e grande
a derrocada de um mundo
vista da pequena altura de gente

os males secretos dormem de dia
como baratas invisíveis
que sobem pelos ralos
enquanto a gente sonha

domingo, 21 de março de 2010

pequenas considerações sobre uma carta de Vitor Hugo



 
    O vosso artigo sobre Théophile Gautier, meu senhor, é uma dessas páginas que provocam a reflexão. Mérito raro, fazer pensar; dom unicamente dos eleitos. Não vos enganais ao prever alguma dissidência entre nós. Entendo toda a vossa filosofia (pois como todo o poeta, tendes filosofia); faço mais do que compreendê-la, admito-a; mas conservo a minha. Nunca disse a Arte pela Arte; disse sempre: a Arte pelo progresso. No fundo é a mesma coisa e vosso espírito é por demais penetrante para deixar de percebê-lo. Avante! É a frase do Progresso; é também o grito da Arte. Todo o verbo da Poesia aí está. Ite.
    Que fazeis ao escrever estes versos surpreendentes: " Os sete anciãos" e "As velhinhas" que me dedicais e pelos quais vos agradeço. Que fazeis? Caminhais. Avançais. Dotais o céu da arte de não sei que raio macabro. Criais um arrepio novo.
    A Arte não é perfectível, creio ter sido um dos primeiros a dizê-lo, portanto, sei disso; ninguém ultrapassará Esquilo, ninguém ultrapassará Fídias, mas podemos igualá-los; e, para isso, é preciso deslocar o horizonte da Arte; ir mais alto, ir mais longe, caminhar. O poeta não pode ir sozinho, é preciso que o homem se desloque também. Os passos da Humanidade são, portanto, os próprios passos da Arte. Portanto, glória ao Progresso.
    É pelo progresso que sofro neste momento e que estou pronto para morrer. (De uma carta de Vitor Hugo a Baudelaire)


  *********************************************************************************

 
    O primeiro excerto em negrito parece de certo modo correto. De outro ângulo, na arte sempre sobra algo inacabado, portanto não corrijo Ésquilo ou Fídias, contudo estes, se eternos fossem, provavelmente estariam se autocorrigindo constantemente, por se crerem longe da perfeição. Portanto, a arte não é perfectível não porque ela seja perfeita, mas isto sim, por sempre estar a lhe faltar algo com que se lhe dê um fim, ou seja, pela sua incompletude.
    O segundo excerto em negrito me pareceria um tanto melhor se pudéssemos invertê-lo, dizendo: os passos da arte são, portanto, os próprios passos da humanidade. Ordem que nos obriga a descrer na função do artista desbravador, nos insere na realidade de um artista que anda, como de resto a humanidade, em círculos, tateando o desconhecido e firmando-se num terreno escorregadiço sobre o abismo, que nos conduz a este interminável confronto com a morte. Morte que, como o lobo na floresta, nos aponta e nos tange a trilhar este caminho sem fim.
    

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

amigos de viagem


Comecei a tomar contato com Peter, Paul and Mary nos meados dos 80. Primeiro nas conversas com meu amigo Ivaldo Araujo, depois num LP lançado pela Band, onde ouvi pela primeira vez com consciência, pois Peter , Paul and Mary (PP&M) certamente fazem parte do inconsciente de quem nasceu na década de 60. Mais adiante, final dos 80 ou início dos noventa encontrei o LP Ten Years Together. Disco com vários dos seus hits (500 miles, blowin' in the Wind, if I had a hammer, lemon tree, early morning rain, Puff the magic dragon, leaving on jet plane). Comprei, um pra mim, outro pro meu amigo. Escutei muito àquele LP, me encantava o que nele considerava simples, despojado e acolhedor.
Nos tempos do planos econômicos que grassaram pelo país, houve momentos em que se tornou viável a compra do cd importado, quando adquiri vários de PP&M. Também tive o vídeo cassete do show Life Lines Live, onde convidam amigos, um deles Odetta, que canta House of rising Sun, uma maravilha, descoberta inesquecível.
Por que tanto PP&M por aqui agora ? Mary Travers morreu dia 9 de setembro de 2009 aos 72 anos. O que me obrigou a numa pequena tentativa de homenagem, compartilhar o que estes três companheiros de viagem me proporcionaram nestes últimos 20 anos.

domingo, 31 de janeiro de 2010

odetta

pp&m

http://www.youtube.com/watch?v=bwB2A9HHaCU



http://www.youtube.com/watch?v=_UKvpONl3No




http://www.youtube.com/watch?v=Wik2uc69WbU




http://www.youtube.com/watch?v=0OCnHNk2Hac




http://www.youtube.com/watch?v=3t4g_1VoGw4




http://www.youtube.com/watch?v=1oU7M4OeSRM




http://www.youtube.com/watch?v=U2HSfKjOKYI




http://www.youtube.com/watch?v=HPbB5n-OW8Q




http://www.youtube.com/watch?v=GCPAhR09wCA




http://www.youtube.com/watch?v=Fa3h3pnhg8s




http://www.youtube.com/watch?v=qUnvjYH9wK4




http://www.youtube.com/watch?v=Fto9ji994JY

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Tornar à origem

        Por que Faial dos açores? Fiz o poema postado abaixo das fotos. E procurava uma imagem com que se pudesse fazer um link com o tema do retorno. Então sei eu lá por que resolvi pesquisar o nome de meu bisavô no Google (Manuel da Costa Medeiros). Descobri que tem gente pesquisando as origens da família. E parece bem provável que se inicie em Faial. Procurei fotos de Faial, me pareceu bonito, e postei. Torna-se um pouco atrás, para bem prosseguir aqui ou em outro qualquer lugar.

sábado, 23 de janeiro de 2010

terminado em 22/01/2010







ao findar do dia

torno à minha casa

mas que retorno pode haver

se o que torna não é o mesmo que parte

se aquilo que fica

e te acolhe no fim da trilha

já não é senão o duplo do que deixaste




sábado, 16 de janeiro de 2010

o repente extemporâneo de uma verdade


Hoje cheguei num bar da cidade, em uma atmosfera pessoal um tanto lúgubre. Tudo, tudo o que estava ao meu redor era muito, muito melhor do que eu em qualquer momento da minha vida poderia ser. Bebi algumas. O que poderia ter contribuído para que o lúgubre vingasse inda mais. Mas por vezes trazemos o livro certo, abri, e li um monte de considerações quanto a impossibilidade de entender a rede de causalidades que nos cinge. Passei de um estado de total desconcerto frente à realidade para um sentimento de gostoso de estar contente em poder com-templar (quem sabe possamos dizer, ser contemporâneo de) tudo, tudo o que somos e vemos neste momento.
O que nos diz Chopra; creio de um modo preciso: "Quando você atua a partir dessa referência interior, o seu senso do eu está claro e não é afetado por fatores externos. Essa é a origem do poder pessoal. Quando os fatores externos deixam de influenciar o seu senso do eu, você se torna imune às críticas e aos elogios. Você também entende que somos todos iguais, por estarmos ligados ao mesmo fluxo de inteligência consciente. Isso significa que você compreende que enquanto passa pela vida, não é inferior nem superior a ninguém. Não precisa implorar ou convencer ninguém de nada porque não precisa convencer a si mesmo."
Portanto mantenhamo-nos fíéis a nós mesmos, sempre, e sejamos felizes o quanto possamos, mesmo nos momentos de baixa. Pois de resto, mesmo aqui, nos confins da nossa rede de causalidades, presente, sempre há a probabilidade de um entrechoque com um momento, um naco, de felicidade, muitas vezes basta persistir um pouco mais, dar duas ou três braçadas, flutuar, e esperar que a próxima onda vença o repuxo, e possamos novamente, já na praia, respirar com um pouco mais de tranquilidade.

 

terça-feira, 12 de janeiro de 2010



sangra o desejo

na pele desenhada pela vergasta

esfaimada carne

a difamar votos e promessas



nessa saudade congênita

a dor da espera

e o vôo de tordos ao cair da tarde

não recupera a respiração cortada

não há remédio, nem veneno

só e sempre a mancha escura

a cobrir o peito

a sucumbir inteiro

o pulso

domingo, 3 de janeiro de 2010

Um tantinho de Ernesto Sábato (de O escritor e seus Fantasmas)



Uma literatura da esperança



O homem é feito não apenas de desesperança, mas também, e fundamentalmente, de fé e esperança; não somente de morte, mas também de ânsias de vida; tampouco unicamente de solidão, mas também de comunhão e amor. A obra de Saint-Exupéry mostra como a literatura pode ser profunda e, não obstante, estar impregnada de cálidos sentimentos positivos. Disse Nietzsche que um pessimista é um idealista ressentido. Se modificarmos levemente o aforismo, dizendo que é um idealista desiludido, daí poderíamos passar a sustentar que é um homem que não termina jamais de se desiludir, pois há na condição psicológica do idealista uma espécie de ingenuidade inesgotável. E assim como a desilusão nasce da ilusão, a desesperança surge da esperança; mas uma e outra, desilusão e desesperança, são curiosamente o signo da profunda e generosa fé no homem.

Os céticos, os que nunca crêem em nada, tampouco chegam a ser pessimistas. Por isso, a literatura de hoje, a mais poderosa e genuína, jamais cai no mero ceticismo, como o fazia com tanta freqüência nos encantadores tempos de Anatole France: ela incorre na trágica desesperança que vem depois do desmoronamento de uma fé e que quase invariavelmente é o anúncio de outra. O homem precisa de uma ordem, uma estrutura sólida para fincar pé. Achou que a encontrara na ordem científica, mas por fim compreendeu que ela era alheia as nossas necessidades espirituais mais profundas: o desmoronamento da civilização tecnólatra quaisquer que sejam suas causas materiais, revelou que essa ordem científica, longe de nos oferecer uma base segura, nos convertia em escravos de uma engrenagem implacável; quando acreditamos ter conquistado o mundo, descobrimos que estávamos a ponto de ser esmagados por ele. Em vastos movimentos, os homens se precipitaram então rumo a novas religiões laicas ou políticas, quando não se reintegraram no âmbito das religiões antigas e autênticas.

E em tais condições, surgiu a nova literatura. Primeiro, como uma investigação ansiosa do caos, como um exame da condição do homem em meio a confusão. Depois, e por meio dessa indagação, como uma tentativa mais ou menos obscura de nos oferecer também essa ordem de que necessitamos, um rumo em meio à tempestade.

Para isso, foi preciso derrubar os falsos valores de uma sociedade, regida por fetiches ou por pequenos e farisaicos deuses burgueses.

Mas a esfera do romance é o mundo dos desejos, dos sonhos e ilusões, da realidade que não foi ou não pode ser: sempre um pouco ao inverso do mundo cotidiano; sempre um pouco a tendência a realizar o contrário do que nos rodeia. Desse modo, no século da ordem burguesa, proclamou a desordem e a anarquia, e heróis como Raskolnikov puseram bombas sob as pontes e vias de comunicação da sociedade hipócrita em que sofriam. Mas agora, quando as guerras totais e os totalitarismos nos trouxeram o caos universal, o romance busca inconscientemente uma nova terra da esperança, uma luz no meio das trevas, uma terra firme em meio à gigantesca inundação. Destruiu-se demais. E quando o real é a destruição, o romanesco só pode ser a construção de alguma outra fé.

Se esta tese esta correta, não é arriscado supor que nos próximos anos o romance que mais ressonância terá no coração dos homens será aquele que, de alguma maneira, seja capaz de suscitar uma nova mas genuína esperança.





Um tantinho de Clarice Lispector (de Perto do Coração Selvagem)

Margarida a Violeta conhecia

uma era cega, uma bem louca vivia

a cega sabia o que a doida dizia

e terminou vendo o que ninguém mais via ...