do tratado da reforma da inteligência

"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."

domingo, 3 de janeiro de 2010

Um tantinho de Ernesto Sábato (de O escritor e seus Fantasmas)



Uma literatura da esperança



O homem é feito não apenas de desesperança, mas também, e fundamentalmente, de fé e esperança; não somente de morte, mas também de ânsias de vida; tampouco unicamente de solidão, mas também de comunhão e amor. A obra de Saint-Exupéry mostra como a literatura pode ser profunda e, não obstante, estar impregnada de cálidos sentimentos positivos. Disse Nietzsche que um pessimista é um idealista ressentido. Se modificarmos levemente o aforismo, dizendo que é um idealista desiludido, daí poderíamos passar a sustentar que é um homem que não termina jamais de se desiludir, pois há na condição psicológica do idealista uma espécie de ingenuidade inesgotável. E assim como a desilusão nasce da ilusão, a desesperança surge da esperança; mas uma e outra, desilusão e desesperança, são curiosamente o signo da profunda e generosa fé no homem.

Os céticos, os que nunca crêem em nada, tampouco chegam a ser pessimistas. Por isso, a literatura de hoje, a mais poderosa e genuína, jamais cai no mero ceticismo, como o fazia com tanta freqüência nos encantadores tempos de Anatole France: ela incorre na trágica desesperança que vem depois do desmoronamento de uma fé e que quase invariavelmente é o anúncio de outra. O homem precisa de uma ordem, uma estrutura sólida para fincar pé. Achou que a encontrara na ordem científica, mas por fim compreendeu que ela era alheia as nossas necessidades espirituais mais profundas: o desmoronamento da civilização tecnólatra quaisquer que sejam suas causas materiais, revelou que essa ordem científica, longe de nos oferecer uma base segura, nos convertia em escravos de uma engrenagem implacável; quando acreditamos ter conquistado o mundo, descobrimos que estávamos a ponto de ser esmagados por ele. Em vastos movimentos, os homens se precipitaram então rumo a novas religiões laicas ou políticas, quando não se reintegraram no âmbito das religiões antigas e autênticas.

E em tais condições, surgiu a nova literatura. Primeiro, como uma investigação ansiosa do caos, como um exame da condição do homem em meio a confusão. Depois, e por meio dessa indagação, como uma tentativa mais ou menos obscura de nos oferecer também essa ordem de que necessitamos, um rumo em meio à tempestade.

Para isso, foi preciso derrubar os falsos valores de uma sociedade, regida por fetiches ou por pequenos e farisaicos deuses burgueses.

Mas a esfera do romance é o mundo dos desejos, dos sonhos e ilusões, da realidade que não foi ou não pode ser: sempre um pouco ao inverso do mundo cotidiano; sempre um pouco a tendência a realizar o contrário do que nos rodeia. Desse modo, no século da ordem burguesa, proclamou a desordem e a anarquia, e heróis como Raskolnikov puseram bombas sob as pontes e vias de comunicação da sociedade hipócrita em que sofriam. Mas agora, quando as guerras totais e os totalitarismos nos trouxeram o caos universal, o romance busca inconscientemente uma nova terra da esperança, uma luz no meio das trevas, uma terra firme em meio à gigantesca inundação. Destruiu-se demais. E quando o real é a destruição, o romanesco só pode ser a construção de alguma outra fé.

Se esta tese esta correta, não é arriscado supor que nos próximos anos o romance que mais ressonância terá no coração dos homens será aquele que, de alguma maneira, seja capaz de suscitar uma nova mas genuína esperança.





Um comentário:

  1. Jaime,
    ano novo, novo giro ao redor do sol, novas esperanças, mano.

    Gostei do texto. Pelo que entendi, é do Sábato, isso?

    Andei pensando nessa direção esses dias, lendo O Encantamento do Humano - Ecologia e Espiritualidade, da filósofa Nancy Mangabeira Unger.

    Embora não focando a literatura, mas aspectos da ética, da religiosidade e da ecologia, alguns pontos coincidem. A re-ligação do homem com a realidade, esta vista como real-idade, uma linguagem original que coloca o majestoso, a majestade. Isso nada tendo a ver com monarquias e formas mundanas de poder, mas sim com aspectos simbólicos de uma linguagem onde o homem possa ver a natureza de sua própria existência como algo a ser manipulado e controlado. Um domínio de si próprio para que possa observar e absorver aspectos encantatórios de estar vivo com os seus semelhantes. Entre esses semelhantes, eu compreendo, a vida dos outros que lhe são próximos, a sua capacidade de sonhar com Deuses e obras, com a literatura, e, mesmo, a observância de uma modo de com-viver mais solidário e igualitário.
    Aí a ligação com o pensamento ecológico que bota o homem dentro da sua casa, sua morada. Fazendo parte da natureza, não algo separado, mas algo que lhe é essencial.
    Onde entraria a literatura, a capacidade de gerar e contar histórias?
    Na construção possível de um imaginário como a realeza do mágico.
    O que se tem chamado de real pelo mundo é apenas máscara, o dedo do homem apontado para o seu próprio nariz, e muitas vezes, lamentavelmente, apenas para os narizes do outro.
    O real verdadeiro é aquele onde temos a estrela guiando os reis magos. A ciência que sente e conversa com aspectos do cosmos como a casa verdadeira do homem. O dedo apontando para o universo é a verdadeira esperança, amigo.
    A criança, a sabedoria dos povos da floresta, o saber dos poetas e dos mestres nos fala disso. E nos mostra e nos revela.
    Apenas nos resta obedecer ao olhar novo. Sempre novo, porque original.
    É mais ou menos isso que quero insinuar quando por vezes te falo na linguagem simples e clara que a me faz seguir buscando para a poesia. E para a minha vida. Nem sempre acerto ou consigo tocar e sentir tal coisa. Quando acontece, e acontece, felizmente, sinto-me presente e presenteado no mundo.

    Um abraço.

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