do tratado da reforma da inteligência

"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Canção da Felicidade : ideal de um parisiense - um tantinho de Anto


Felicidade! Felicidade!
Ai quem ma dera em minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão.


Morar, mui simples, nalguma casa
Toda caiada, defronte o Mar;
No lume, ao menos, ter uma brasa
E uma sardinha pra nela assar...


Não ter fortuna, não ter dinheiro,
Papéis no Banco, nada a render:
Guardar, podendo, num mealheiro
Economias pró que vier.


Ir pelas tardes, até a fonte
Ver as pequenas a encher e a rir,
E ver entre elas o Zé da Ponte
Um pouco torto, quase a cair.


Não ter quimeras, não ter cuidados
E contentar-se com o que é seu,
Não ter torturas, não ter pecados
Que, em se morrendo, vai-se pro Céu!


Não ter talento; suficiente
Para na vida saber andar,
E quanto a estudos saber somente
(Mas ai somente!) ler e contar.


Mulher e filhos! A Mulherzinha
Tão loira e alegre, Jesus! Jesus!
E, nove meses, vê-la choquinha
Como uma pomba, dar outra à luz.


Oh! grande vida, valha a verdade!
Oh! grande vida, mas que ilusão!
Felicidade! Felicidade!
Ai quem ma dera na minha mão!


Paris, 1892



domingo, 7 de dezembro de 2008

gesso - um tantinho de manuel bandeira


Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem de vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a,
manchou-a de pátina amarelo-suja.

Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica
de tisíco.

Um dia mão estúpida
inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes
fragmentos, recompus a figurinha
que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda
mais o sujo mordente da pátina...

Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

balada do mangue - um tantinho de vinícius de moraes

Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!