Não sou muito dada a gostar de prosa, mas andei lendo alguns contos de Machado de Assis (1839-1908), um dos maiores nomes do Realismo brasileiro e, por ter juntado o estilo impecável e a ironia à crítica mordaz e o humor, vale mencionar um deles em especial, O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana, e algumas de suas passagens brilhantes. Nesse conto, o personagem central, chamado Jacobina, revela como reconheceu sua identidade, por volta de 25 anos, quando foi nomeado alferes da guarda nacional e vestiu uma farda. E sentencia:
Não há uma alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
... muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. ...
Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia.
O alferes aliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Os fatos explicarão melhor os sentimentos, os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça enamorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando.
Mas o certo é que fiquei só,... Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exerior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.
Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, tic-tac, feriam-se a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga.
Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...
De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão e linhas, a mesma decomposição de contornos...
Lembrou-me vestir a farda de alferes... e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e ... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono.
Analisando o conto, o professor Marcos Bondam entende que O Espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública, a alma humana é dúbia, ou seja, os tipos sociais (marido, comerciante, político, etc.) teriam um comportamento previsível, o que não ocorre individualmente com as pessoas. ... O desejo individual se esconde quando as personagens se limitam a desempenhar seus comportamentos sociais. A alma exterior, que olha de fora para dentro, segundo Machado de Assis, é uma casca ou couraça que as pessoas criam para sobreviver na luta social. Mas algumas se prendem a elas tão radicalmente que eliminam sua alma interior, seu verdadeiro EU, deparando-se com um nada, um vazio completo. O homem é um ator social.
Pura poesia!
do tratado da reforma da inteligência
"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
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