filhos de orfeu
do tratado da reforma da inteligência
"tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil ....As coisas que mais frequentemente ocorrem na vida, estimadas como o supremo bem pelos homens, a julgar pelo que eles praticam, reduzem-se, efetivamente, a estas três, a saber, a riqueza, as honras e o prazer dos sentidos. Com estas três coisas a mente se distrai de tal maneira que muito pouco pode cogitar de qualquer outro bem. ... Assim, parecia claro que todos esses males provinham disto – que toda felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos pelo amor. De fato, nunca surgem disputas por coisas que não se ama; nem há qualquer tristeza se as perdemos; nem inveja, se outros a possuem;nenhum ódio e, para dizer tudo numa palavra, nenhuma pertubação da alma (animus). Ao contrário, tudo isso acontece quando amamos coisas que podem perecer, como são aquelas que acabamos de falar. Mas o amor das coisas eternas e infinitas nutre a alma de puro gozo, isento de qualquer tristeza..."
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
Conforme combinado, aí vai a última publicação do ano:
ansiava embrenhar-se num azul ondulante
cega de esperas e sem qualquer definição
afundar o corpo numa calmaria líquida
se falasse, como assunto as essências e as medulas
nos corredores da casa ajustaria os cantos
de modo a não lhe caber tarefa
de afastar os tantos que deles insistem
em se conformar e se fazer lugar
se de mãos pudesse realmente dispor
daria gaiola às pequenas, às lívidas, veludo de toque
e como algoz implacável delas só reteria o canto
mãos presas só precisam de quem as escute dor
e, se por fim, lhe restasse um tanto de ainda paz
de seu comeria os ossos
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Fernando Pessoa - Poesia completa de Alberto Caeiro
Agora que sinto amor
Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
"PÊSSEGOS
Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava em
orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo
(possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
Como um pêssego de Deus."
Manoel de Barros, Poemas rupestres.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
terça-feira, 6 de novembro de 2012
meu cabimento é inteiro
somente onde não estou
santos não guardam meu adormecer
que é pouco e lento
nessa fome sem nome
não há sabor a atiçar as narinas
e minha língua é viva
quando de tua língua a autoria da cópula
a música que anima o coreto
se faz das mesmas notas que acompanham o cortejo
os fins, enfim, justificam os meios?
cova rasa não garante esquecimento
tem missão abortada
no quarto ao lado, os filhos têm asas cortadas
há uma dor de espera na velocidade das pernas
a porta aberta garante o retorno
apenas do que ainda não se foi
varanda cercada
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Letra de música toda trabalhada em decassílabo heroico, onde o acento recai na sexta sílaba. Caetano é Caetano e essa canção é linda!
O quereres
Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
sou tudo que sinto enquanto me faltas
e é quando sonegas tua voz que te
conheço
à sombra do medo durmo sossegada
na parecença do breu construo pássaros
de papel
com suas asas imóveis e olhar gradeado
nas noites quietas, mais é abundante o
orvalho
a respiração de nuvens brancas
pede água a plenos pulmões
porque desfrutei de um solo fértil
jamais me perdoarei o fracasso em
cultivá-lo
no tempo ávido que devora com
mandíbulas cínicas
sou minha própria plateia
lá fora, cães ferozes rosnam por
liberdade
mesmo com todo o seu perigo
será que vou encarar minha morte
sem jamais ter sentido que vivi?
quantas mortes a cada escolha evitada,
em cada pensamento natimorto
há um quanto de verdade que se
consegue suportar
já que a visão da descoberta
pode trazer à tona a vontade de
arrancar os próprios olhos
quero ser condenada a escapar da vida
perigosamente segura
abrir à porta uma pequena fresta
não me desvencilhei daquela primeira
pele
e ainda assim, permaneço predadora
minha autoconsciência vem tarifada
pelo desespero
e a inocência me matou de fome
se me afasto do conforto do rebanho
não estou fadada a uma vida vigilante
tal qual aquela de um mentiroso?
falo comigo não muito alto
temendo escutar tudo que digo
acumulo mentiras em uma poça estagnada
que evapora ao sol do meio-dia
(de BREU RENDADO)
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
- Não posso deixar de citar, aqui, o poema de Carlos Pena Filho:
- Soneto do Desmantelo Azul
- Então, pintei de azul os meus sapatos
- por não poder de azul pintar as ruas,
- depois, vesti meus gestos insensatos
- e colori, as minhas mãos e as tuas.
- Para extinguir em nós o azul ausente
- e aprisionar no azul as coisas gratas,
- enfim, nós derramamos simplesmente
- azul sobre os vestidos e as gravatas.
- E afogados em nós, nem nos lembramos
- que no excesso que havia em nosso espaço
- pudesse haver de azul também cansaço.
- E perdidos de azul nos contemplamos
- e vimos que entre nós nascia um sul
- vertiginosamente azul. Azul.
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
Está aí o prefácio do meu terceiro livro de poesias, BREU RENDADO, por Ronald Augusto:
A leitura noturna de Breu rendado:
Borges escreve em algum lugar, a propósito do jogo entre o fortuito e o forçoso, que quando alguma coisa acontece apenas uma vez estamos frente ao acaso; se acontece pela segunda vez pode ser que indique uma coincidência feliz ou não. Por outro lado, se o evento ocorre uma terceira vez trata-se já de uma confirmação.
Pois bem, o leitor está prestes a mergulhar entre as capas do terceiro livro de poemas de Deisi Beier intitulado Breu rendado. Deisi daria a entender com essa metáfora sua apetência por uma linguagem mais fechada ou rente a uma obscuridade virtuosa, espécie de corolário da razão poética? Não precisamos tentar responder à questão, inclusive porque seria limitador do estranho prazer proporcionado por tal poesia. Mas voltemos à ilusão de Borges.
De acordo com a imagem triádica do escritor argentino poderíamos, por outro lado, indagar: com que espécie de confirmação, em fim de contas, nos deparamos lendo Breu rendado? A pergunta não pretende projetar conclusões a respeito. Ao mesmo tempo é bastante possível constatar, por meio de uma precisa reiteração, essa confirmação borgeana calcada no número três, para tanto, basta lembrar os títulos das duas primeiras obras da poeta, a saber, Tramas de orvalho (2007) e Córrego de amarras (2010). Dentro desta sequência coincidente onde prevalecem na materialidade verbal (“trama”, “amarra”) equivalências e desdobramentos lexicais evocativos de fio, rede ou liame, bem como projeções semânticas ligadas ao entrecho, à prisão e à doença (uma das acepções para “trama”), mas em sentido de pathos: as paixões da alma – e não seria demais lembrar ainda a tela com que Penélope ludibria seus pretendentes, desfazendo à noite a urdidura feita por ela à luz do dia –; muito bem, além disso, temos, agora, Breu rendado, que, por sua vez, enreda (arremata?) numa coesão de forma e fundo esse novo discurso, esse novo objeto verbal ofertado ao leitor.
Estamos, portanto, no centro de uma tensão entre o fechado e o aberto. Breu rendado supõe uma relativa obscuridade conquistada e estruturada sobre escolhas expressivas. O difícil (“breu”) em poesia não pretende cancelar a participação do leitor, o difícil está no poema (a rede, a trama, a renda) como um convite à colaboração e à sugestão. Deisi faz a si mesma essa pergunta subjacente ao trabalho compositivo de qualquer poema: como dizer o que vejo tão claro? Mas, paradoxalmente, o resultado o mais das vezes – como de resto acontece com todos os poetas na busca da melhor expressão – é o da opacidade ou, melhor, de uma fungibilidade do significado ante a complexa beleza do escrito. Aquilo que o poema tenta figurar e que, a princípio, o justificaria enquanto forma estética acaba por escapar da vista do seu criador. Mas é aqui que o leitor se torna decisivo, pois ele reinventa o poema; o significado não está mais no poema (aliás, nunca esteve), mas no leitor. Na superfície têxtil dos poemas de Deisi Beier o leitor deve estar disposto a apalpar, aqui, um “bloco de nudez e escuridão”, ali, vestir “as trevas guardadas nas roupas” e, mais além, aceitar que as palavras vazem de seu vazio. Palavras, férreas como o silêncio do escorpião.
Na verdade, temos aqui o fotograma/extrato de um percurso textual em movimento e que não capitula ao cumulativo; não é livro que se publica como meio para fazer “carreira nas letras” como se verifica facilmente num rápido olhar ao panorama da produção literária recente. Breu rendado trata-se de um autorretrato fugidio, esboçado a partir do desejo de linguagem da autora e de uma deriva semântica (razão do poema) que se desdobra em interpretações pertinentes ao leitor; uma questão imprecisa que a poeta se coloca a si mesma e a metáfora da solução é essa interrogação permanente eventualmente constelada em uma forma inscrita na página.
Deisi Beier “ataca o lado oposto do verbo” na tentativa de renomear a experiência. A poesia, através de sua vertigem, ao repropor os mundos interno e externo com “insana simetria” alcança uma “lucidez acumulada que mata aos poucos” o verismo do representado. Os versos de Breu rendado, como acontece com a tradição que se segue ao modernismo, tematizam na surdina os limites do discurso poético, o divórcio entre as palavras e os objetos que elas designam e a quase impossibilidade de precisar o impreciso.
A poética do bosque, do labirinto circular, metáfora desse sistema de signos onde o leitor-fruidor é protagonista e vítima, onde decide perder-se de modo que sua aparente derrota se converta em êxito, se encontra embutida no ritmo do verso de Deisi Beier, vejamos, por exemplo, este trecho: “na poesia/ toda armadilha atrai/ leitura noturna em prata tramada”. Notar a palavra rama dispersa anagramaticamente na sequência desses versos:
...todA ARMAdilhA AtRAi
leituRA notuRnA eM pRAtA tRAMAdA
Mas não é o apenas o leitor que tem a chance de perder o senso no espaço ambíguo do poema, a poeta também se candidata a abandonar o terreno da sua identidade e diz: “onde não estou/ precisamente ali começa minha/ escrita”.
Em seu mais recente gesto de linguagem – a confirmação como um terceiro movimento –, Deisi Beier nos apresenta, através de sua imagética verbal, algo que, na falta de melhor definição, poderia ser nomeado como uma tópica do medo que vai repercutir em toda uma imagética da culpa, da falta e, portanto, da punição. Entretanto, mais do que com um “congresso internacional”, o leitor se confronta com o “escuro recesso” do medo (de onde, segundo Bandeira, “as fontes da vida” só fazem “sangrar inúteis por duas feridas”), já que, ao contrário de Drummond, a poeta circunscreve essa tópica num lugar aquém/além do social e do ideológico. O medo parece estar mais ligado à corporeidade do que ao espírito e à moralidade. Cumpre observar que os poemas abordam essa tópica tanto pelo lado da resignação, quanto pela vertente da recusa.
Em muitos poemas de Breu rendado notamos palavras, sintagmas e versos que, por assim dizer, formam esse “conteúdo inessencial”, subsidiário, mas não irrelevante, a atravessar o conjunto. Eis aqui um breve levantamento: “temendo escutar tudo que digo”; “as costas vincadas do arrependimento”; “o embaraço da língua/ acovardada”; “a história e seus remorsos”; “o breu rendado de minhas culpas” (de onde sai o título do livro); “antecipando a expiação”; “os males secretos dormem de dia”; “cumpro a tarefa de salvar pela tentação”; “nascer foi um tanto de erros a corrigir”; “uma fome de lamparinas medrosas”; “meu medo ultrapassa as paredes”. Sobram exemplos. Evidentemente, Breu rendado não esgota aí a sua trama de significações. Essa particularidade temática forma um ruído de sentido integrado ao seu movimento de linguagem. Uma vereda a ser explorada pelo leitor interessado.
Na tolerância com a pressa e a comunicabilidade pop, exigidas pela realidade contemporânea, somos forçados a catalogar cada palavra na faixa mais estreita de seu significado. Felizmente, a contrapelo deste estado de coisas, há a experiência da poesia que leva a cabo a divisa carrolliana segundo a qual, no que toca a esta linguagem “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”. Deisi Beier dá conta disso com sucesso em seu Breu rendado.
Ao mesmo tempo a poeta sabe que a poesia é uma forma de discurso que se situa de maneira ambivalente entre a vida ativa e a vida contemplativa. Todo poeta participa da vida radicalmente, isto é, por meio da linguagem almeja um mergulho cultural, social, existencial, político e estético. A vocação transgressiva e equívoca desse discurso – discurso que a um só tempo vivifica e mata a vida –, pela simples diferença com relação às demais formas de expressão verbal, exige essa participação desmedida tanto nos destinos do homem como nos destinos da poesia.
Finalmente, outras explorações a propósito da poética de Deisi Beier poderiam ser adiantadas de minha parte ao leitor, mas em respeito à sua liberdade de interpretação e ao espaço que se deve dispor em um prefácio para dizer algo sobre o livro que seja mais do que protocolar elogio, interrompo por aqui meus comentários com a convicção de que esse mesmo leitor cumprirá sua parte nesse jogo estético, ainda que temendo escutar tudo o que quer dizer lateralmente Deisi Beier com sua desafiadora poesia. Breu rendado agora lhe pertence. E os sentidos que venha ou não a alcançar serão irredutíveis à sua pessoa e ao seu repertório.
quarta-feira, 20 de abril de 2011
Quem tiver a oportunidade de fuçar nas estantes das livrarias, detenha-se nos poemas de Luis Dolhnikoff, em seu livro LODO, publicado pela Ateliê Editorial, 2009. Trago um deles, para atiçar a curiosidade dos leitores:
Réquiem para um cão morto
não choro mais a morte do meu cão
agora transformada em decassílabo
mas não por ter-se transformado em ritmo
que oscila entre o heroico e o imperfeito
como ele próprio entre o imperfeito e o heroico
porém porque sua perda é uma presença
mais fiel, mais companheira que os cães
(que jamais abandona o novo dono
sombra da sombra que jaz a seus pés
mas cujo corpo, morto, habita a alma
como um corpo estranho entranhando um corpo
aviva a carne morta em carne viva)
e porque sua perda é uma tal presença
não há mais por que chorar essa perda
(porque chorar é para encher de lágrimas
o vazio que as lágrimas esvaziam
ao transbordar-se do vazio do olhar)
terça-feira, 15 de março de 2011
Depois do Carnaval, enfim inicia-se o ano, com tudo que lhe é próprio. Então, aí vai o primeiro poema de março e suas águas:
não sobrara pedra sobre pedra
do que acostumou denominar seu castelo
cravado que era na planície dos sentidos
ao pé dos ímpios montes de ressalvas
nesse espaço entre um vinco e outro de tempo
saudades feito maresias
que tomam de assalto as crinas desavisadas
e criam redemoinhos
heras teimosas cobrem os escombros
e sequer permitem esquecer
não sobrara pedra sobre pedra
do que acostumou denominar seu castelo
cravado que era na planície dos sentidos
ao pé dos ímpios montes de ressalvas
nesse espaço entre um vinco e outro de tempo
saudades feito maresias
que tomam de assalto as crinas desavisadas
e criam redemoinhos
heras teimosas cobrem os escombros
e sequer permitem esquecer
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Não sou muito dada a gostar de prosa, mas andei lendo alguns contos de Machado de Assis (1839-1908), um dos maiores nomes do Realismo brasileiro e, por ter juntado o estilo impecável e a ironia à crítica mordaz e o humor, vale mencionar um deles em especial, O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana, e algumas de suas passagens brilhantes. Nesse conto, o personagem central, chamado Jacobina, revela como reconheceu sua identidade, por volta de 25 anos, quando foi nomeado alferes da guarda nacional e vestiu uma farda. E sentencia:
Não há uma alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
... muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. ...
Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia.
O alferes aliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Os fatos explicarão melhor os sentimentos, os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça enamorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando.
Mas o certo é que fiquei só,... Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exerior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.
Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, tic-tac, feriam-se a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga.
Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...
De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão e linhas, a mesma decomposição de contornos...
Lembrou-me vestir a farda de alferes... e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e ... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono.
Analisando o conto, o professor Marcos Bondam entende que O Espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública, a alma humana é dúbia, ou seja, os tipos sociais (marido, comerciante, político, etc.) teriam um comportamento previsível, o que não ocorre individualmente com as pessoas. ... O desejo individual se esconde quando as personagens se limitam a desempenhar seus comportamentos sociais. A alma exterior, que olha de fora para dentro, segundo Machado de Assis, é uma casca ou couraça que as pessoas criam para sobreviver na luta social. Mas algumas se prendem a elas tão radicalmente que eliminam sua alma interior, seu verdadeiro EU, deparando-se com um nada, um vazio completo. O homem é um ator social.
Pura poesia!
Não há uma alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
... muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. ...
Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia.
O alferes aliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Os fatos explicarão melhor os sentimentos, os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça enamorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando.
Mas o certo é que fiquei só,... Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exerior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.
Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, tic-tac, feriam-se a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: Never, for ever! For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga.
Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar...
De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão e linhas, a mesma decomposição de contornos...
Lembrou-me vestir a farda de alferes... e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e ... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono.
Analisando o conto, o professor Marcos Bondam entende que O Espelho é a matriz de uma certeza machadiana que poderia formular-se assim: só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública, a alma humana é dúbia, ou seja, os tipos sociais (marido, comerciante, político, etc.) teriam um comportamento previsível, o que não ocorre individualmente com as pessoas. ... O desejo individual se esconde quando as personagens se limitam a desempenhar seus comportamentos sociais. A alma exterior, que olha de fora para dentro, segundo Machado de Assis, é uma casca ou couraça que as pessoas criam para sobreviver na luta social. Mas algumas se prendem a elas tão radicalmente que eliminam sua alma interior, seu verdadeiro EU, deparando-se com um nada, um vazio completo. O homem é um ator social.
Pura poesia!
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Dia desses me deparei na Feira do Livro com uma publicação da L&PM, um livro de crônicas do nosso poeta Affonso Romano de Sant'Anna, Tempo de delicadeza, em que trata, delicadamente, de temas corriqueiros da vida com o olhar único de poeta. Trouxe pra casa e tenho desfrutado com prazer dos textos que ali encontrei. Dentre eles, o que traz o nome do livro e crônica de abertura, Tempo de delicadeza, fala da necessidade de sermos urgentemente delicados, diante da violência, da velocidade, da rudeza que vem tomando conta do nosso cotidiano. O poeta cita, segundo suas próprias palavras, "nosso sedutor e exemplar Vinícius, que há vinte anos nos deixou, delicadamente", que era um profissional da delicadeza e que, na sua Elegia ao primeiro amigo, disse:
mato com delicadeza. faço chorar delicadamente
e me deleito. inventei o carinho dos pés; minha alma
áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre
um corpo de adúltera.
na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com
todas delicado e atento.
se me entediam, abandono-as delicadamente,
despreendendo-me delas com uma doçura de água.
se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
desprende esse fluido que as envolve de maneira
irremissível
sou um meigo energúmeno. até hoje só bati numa
mulher
mas com singular delicadeza. não sou bom
nem mau: sou delicado. preciso ser delicado
porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
como um lobo.
Encontrei nesse poema uma verdade singular, traduzida por Affonso com maestria: porque somos ferozes precisamos ser delicados. E que sejamos, então, delicados. Se necessário for, cruelmente delicados.
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